quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Muito cedo para decidir





Muito cedo para decidir
Rubem Alves

Gandhi se casou menino. Foi casado menino. O contrato, foram os grandes que assinaram. Os dois nem sabiam direito o que estava acontecendo, ainda não haviam completado 10 anos de idade, estavam interessados em brincar. Ninguém era culpado: todo mundo estava sendo levado de roldão pelas engrenagens dessa máquina chamada sociedade, que tudo ignora sobre a felicidade e vai moendo as pessoas nos seus dentes. Os dois passaram o resto da vida se arrastando, pesos enormes, cada um fazendo a infelicidade do outro.

Vocês dirão que felizmente esse costume nunca existiu entre nós: obrigar crianças que nada sabem a entrar por caminhos nos quais terão de andar pelo resto da vida é coisa muito cruel e... burra! Além disso já existe entre nós remédio para casamento que não dá certo.

Antigamente, quando se queria dizer que uma decisão não era grave e podia ser desfeita, dizia-se: "isso não é casamento!". Naquele tempo, sim, casamento era decisão irremediável, para sempre, até que a morte os separasse, eterna comunhão de bens e comunhão de males. Mas agora os casamentos fazem-se e desfazem-se até mesmo contra a vontade do Papa, e os dois ficam livres para começar tudo de novo...

Pois dentro de poucos dias vai acontecer com nossos adolescentes coisa igual ou pior do que aconteceu com o Gandhi e a mulher dele, e ninguém se horroriza, ninguém grita, os pais até ajudam, concordam, empurram, fazem pressão, o filho não quer tomar a decisão, refuga, está com medo. "Tomar uma decisão para o resto da minha vida, meu pai! Não posso agora!" e o pai e a mãe perdem o sono, pensando que há algo errado com o menino ou a menina, e invocam o auxílio de psicólogos para ajudar...

Está chegando para muitos o momento terrível do vestibular, quando vão ser obrigados por uma máquina, do mesmo jeito como o foram Gandhi e Casturbai (era esse o nome da menina), a escrever num espaço em branco o nome da profissão que vão ter.

Do mesmo jeito não: a situação é muito mais grave. Porque casar e descasar são coisas que se resolvem rápido. Às vezes, antes de se descasar de uma ou de um, a pessoa já está com uma outra ou um outro. Mas, com a profissão não tem jeito de fazer assim. Pra casar, basta amar.

Mas na profissão, além de amar tem de saber. E o saber leva tempo pra crescer.

A dor que os adolescentes enfrentam agora é que, na verdade, eles não têm condições de saber o que é que eles amam. Mas a máquina os obriga a tomar uma decisão para o resto da vida, mesmo sem saber.

Saber que a gente gosta disso e gosta daquilo é fácil. O difícil é saber qual, dentre todas, é aquela de que a gente gosta supremamente. Pois, por causa dela, todas as outras terão de ser abandonadas. A isso que se dá o nome de "vocação"; que vem do latim, vocare, que quer dizer "chamar". É um chamado, que vem de dentro da gente, o sentimento de que existe alguma coisa bela, bonita e verdadeira à qual a gente deseja entregar a vida.

Entregar-se a uma profissão é igual a entrar para uma ordem religiosa. Os religiosos, por amor a Deus, fazem votos de castidade, pobreza e obediência. Pois, no momento em que você escrever a palavra fatídica no espaço em branco, você estará fazendo também os seus votos de dedicação total á sua ordem. Cada profissão é uma ordem religiosa, com seus papas, bispos, catecismos, pecados e inquisições.

Se você disser que a decisão não é tão séria assim , que o que está em jogo é só o aprendizado de um ofício para se ganhar a vida e, possivelmente, ficar rico, eu posso até dizer: "Tudo bem! Só que fico com dó de você! Pois não existe coisa mais chata que trabalhar só para ganhar dinheiro."

É o mesmo que dizer que, no casamento, amar não importa. Que o que importa é se o marido — ou a mulher — é rico. Imagine-se agora, nessa situação: você é casado ou casada, não gosta do marido ou da mulher, mas é obrigado a, diariamente, fazer carinho, agradar e fazer amor. Pode existir coisa mais terrível que isso? Pois é a isso que está obrigada uma pessoa, casada com uma profissão sem gostar dela. A situação é mais terrível que no casamento, pois no casamento sempre existe o recurso de umas infidelidades marginais. Mas o profissional, pobrezinho, gozará do seu direito de infidelidade com que outra profissão?

Não fique muito feliz se o seu filho já tem idéias claras sobre o assunto. Isso não é sinal de superioridade. Significa, apenas, que na mesa dele há um prato só. Se ele só tem nabos cozidos para comer, é claro que a decisão já está feita: comerá nabos cozidos e engordará com eles. A dor e a indecisão vêm quando há muitos pratos sobre a mesa e só se pode escolher um.

Um conselho aos pais e aos adolescentes: não levem muito a sério esse ato de colocar a profissão naquele lugar terrível. Aceitem que é muito cedo para uma decisão tão grave. Considerem que é possível que vocês, daqui a um ou dois anos, mudem de idéia. Eu mudei de idéia várias vezes, o que me fez muito bem. Se for necessário, comecem de novo. Não há pressa. Que diferença faz receber o diploma um ano antes ou um ano depois?

Em tudo isso o que causa a maior ansiedade não é nada sério: é aquela sensação boba que domina pais e filhos de que a vida é uma corrida e que é preciso sair correndo na frente para ganhar. Dá uma aflição danada ver os outros começando a corrida, enquanto a gente fica para trás.

Mas a vida não é uma corrida em linha reta. Quando se começa a correr na direção errada, quanto mais rápido for o corredor, mais longe ele ficará do ponto de chegada. Lembrem-se daquele maravilhoso aforismo de T. S. Eliot: "Num país de fugitivos os que andam na direção contrária parecem estar fugindo."

Assim, Raquel, não se aflija. A vida é uma ciranda com muitos começos.

Coloque lá a profissão que você julgar a mais de acordo com o seu coração, sabendo que nada é definitivo. Nem o casamento. Nem a profissão. E nem a própria vida...

O escritor  responde a uma estudante angustiada e dá aos pais motivos para meditarem sobre a escolha da profissão.


O texto acima foi extraído do livro "Estórias de quem gosta de ensinar — O fim dos Vestibulares", editora Ars Poetica — São Paulo, 1995, pág. 31.



Então, não precisa pressa, porém não durmam no tempo.

15 comentários:

  1. Eiiii Aninha!
    Quanto tempo hein moça?! Esse texto não conhecia, mas há um outro (dele tb) que gosto muito, onde ele fala que mais importante que o canudo é ter um ofício...e que os pais deveriam preparar seus filhos para tal. Nada é realmente definitivo.
    Beijuuss e venha me visitar!

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    1. Acho que sei qual é esse que você fala, Re.
      Indo agora, visitar-lhe.
      rs
      Xeros

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  2. Maravilhoso o texto, bem acertado. E tua conclusão, sábia! bjs,chica

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  3. Uma bela crônica, que mostra a necessidade de se ver o futuro com mais calma sem ansiedade...
    Beijos.

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  4. OI coração,

    Estou passando aqui para te conhecer e conhecer seu blog!

    Amei tudo tudo por aqui, quanto capricho !

    é inevitável, estou te seguindo!

    E deixa aqui o convite para você vim me conhecer ! Saiba que ficarei muito feliz!

    Beijocas

    vidadaguidi.blogspot.com

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  5. Verdade em tudo no texto. Adorei! Um grande abraço, Ana Karla!

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  6. Karlinha
    Aqui em casa estou vivendo esse dilema, minha filha no terceiro ano e não sabe o que fazer.. e a pressão é grande demais... já falei pra ela, esquenta não daqui pro final do ano, vc irá muitas vezes de profissão rsrsrsr
    Belo texto!

    Mil bjos, saudades de vc, sua danada! Vamos marcar um dia para nos encontrarmos.
    Sheyla.

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    1. Sheyla, o bom é que você tem consciência disso e passa tranquilidade pra sua filha, mas a maioria por aí além de pressionar, exigem mais do que o filho pode dar.
      Vamos marcar nosso encontrinho.
      Xerossssssss

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  7. Que bela postagem hein amiga!
    Amei te ler! Rubem Alves é formidável!
    Acho uma pena... a maioria dos nossos jovens enfrentam esse problema.
    Abraços! Uma linda tarde pra ti.

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  8. Olá Ana Karla!
    Muito bacana esse texto. Concordo, a gente que já tem uma estrada de vida, sabe que ele tem razão. Lembrei de Saramago: "não tenha pressa, mas não perca tempo". É isso aí. Bjs. Marli

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  9. Muito bom o texto nesta reflexão. Cada vez mais os jovens são colocados mais cedo diante este trevo e difícil decisão para muitos. Ainda mais que que praticamente foram extintos os cursos técnicos de segundo grau, que bem serviam como preparativo desta vocação para algumas carreiras. Hoje todo mundo quer ter faculdade e entrar numa seja lá como for. Ai vem as decepções e desilusões com cursos no meio do caminho.
    Parabéns pela escolha e partilha.
    Carinhoso abraço Ana e bom fim de semana amiga.
    Bjo de paz.

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